Nas últimas décadas do século XX, os sistemas constitucionais e internacionais de proteção da pessoa humana sofreram diversas transformações. Os direitos humanos ou fundamentais passaram a servir como parâmetro material para o judicial review também em países que não possuem uma Constituição escrita, como por exemplo a Inglaterra, a partir do Human Rights Act de 1998 e do Constitutional Act de 2005, e a Nova Zelândia, a partir do New Zealand Bill of Rights Act de 1990.

Por outro lado, o constitucionalismo adotado por países europeus no pós-guerra, América Latina pós-ditaduras, África do Sul pós-apartheid e Leste Europeu após queda do muro de Berlim, levaram a repensar o direito constitucional, uma vez que direitos fundamentais abstratos passaram a exigir um novo modelo interpretativo, na medida em que juízes passaram a decidir não mais baseados apenas no direito escrito, mas em elementos extrajurídicos, assumindo-se que um texto constitucional tem conteúdo moral e político. Na medida em que essas normas de caráter abstrato, apesar de estarem previstas na Constituição, precisam de significação de seu conteúdo, o Judiciário acabou por avocar para si papel importante no jogo político de definição do conteúdo moral dos direitos fundamentais. 

É natural que as Constituições contenham normas abstratas, pois quanto mais gerais e abstratas as normas, mais fácil que elas tenham sido originadas num consenso da comunidade. Assim, os princípios mais abstratos são extraídos por meio de uma consideração de ideias que incluem lógica e moral, política, economia e filosofia natural.

Do mesmo modo, as normas que estabelecem direitos humanos fundamentais, dado ao consenso mínimo quando de sua positivação, fornecem apenas um início de solução a partir de seu campo normativo, uma vez que do seu relato abstrato não é possível identificar todos os elementos necessários à formação de seu sentido.

Não se pode perder de vista que “a norma não se confunde com o enunciado normativo”, mas deve ser considerada como “produto da interação texto/realidade”, e, portanto, nos casos relacionados ao significado dos direitos fundamentais, que não existe na norma em abstrato, nem pode dela ser abstraído, é possível afirmar que só existe norma de direito fundamental concretizada.

Desse modo, seria possível defender que, uma vez que só existe norma de direito fundamental concretizada, o direito sai do texto para a decisão judicial, e, portanto, sai do direito escrito para o direito não escrito, justificando, por este viés também a aproximação dos sistemas de civil law ao common law, que, por sua vez, tem sua construção própria para garantir segurança e coerência ao direito não escrito.

Explica-se, tendo em vista que o verdadeiro sentido das normas de direitos fundamentais não está no texto, mas nas decisões judiciais que as interpretam e aplicam no caso concreto, é possível falar que há uma transferência do direito escrito para o direito não escrito, no sentido de não escrito num documento formal.

Por outro lado, é importante ressaltar que o tema relativo aos princípios constitucionais não escritos não é inerente unicamente aos países de tradição do common law ou que não possuam um texto constitucional escrito, como a Inglaterra ou Nova Zelândia (WALUCHOW, W.J., 2007), mas é comum também em países com Constituição escrita como os Estados Unidos e mesmo no caso do Brasil.

O que também se quer demonstrar é que a Constituição material vai para além da Constituição formal e, do mesmo modo, os princípios constitucionais não escritos no texto constitucional, o que nos leva a procurar outro fundamento de validade e supremacia dessas normas que não sua origem formal. Explica­se melhor: mais do que as palavras expressas no texto, há uma reflexão acerca do significado delas por meio de um apoio de cultura política, moral e jurídica. Ou seja, ao se falar em princípios constitucionais não escritos se está a falar em normas não escritas que são essenciais para a história de uma nação, para sua identidade, seus valores e seu sistema jurídico.

Ao apreciar o surgimento da Constituição escrita do Canadá, Mark Walters (2001) explica que ela surge num contexto que formou o pensamento do common law de que o direito fundamental não escrito é visto como afirmação da supremacia do direito natural, da razão legal ou de princípios universais de moralidade política e direitos humanos acima da lei.

Deve-se ter em vista que, enquanto a Constituição escrita é vista como o direito como representação da vontade soberana (law-as-sovereign will), a Constituição não escrita funciona com a lógica do direito como fruto da razão (law-as-reason).

Ou seja, o direito não escrito unwritten law (ALLAN, T. R. S., 2009) seria uma metáfora que representa uma espécie de proposição jurídica que é derivada por meio de um discurso racional no qual proposições jurídicas específicas, direta ou indiretamente relevantes ao caso em questão, são examinadas, não como expressões fundamentais de regras que esgotam o direito em tela, mas como manifestações de princípios mais abstratos de uma razão secundária, a partir do qual, depois de uma oscilação interpretativa entre as proposições específicas e os princípios gerais que as pressupõem, e tendo em devida consideração a aspiração de igualdade de razão, outras proposições jurídicas específicas podem ser derivadas. Assim, o direito não escrito unwritten law (WALTERS, M. D,  2008) não se constitui apenas de costumes históricos ou da razão natural. É, na verdade, um discurso racional que busca uma unidade da razão mediante uma ascensão indutiva de manifestações particulares de princípios gerais aos princípios gerais propriamente ditos, e, em seguida, uma descida de volta ao nível de especificidade para articular as novas regras ou direitos que concordam, em princípio, com as normas e os direitos estabelecidos.

Há, portanto uma convergência entre o direito escrito e o não escrito segundo o common law. O direito escrito seria aquele que apenas exaure o direito que está em discussão de um modo relativo. Na verdade, o significado das expressões gerais e abstratas do direito escrito nos casos individuais é definido por meio do compromisso judicial com a igualdade, ou com o amplo senso de equidade garantido pela racionalidade do direito não escrito. Ainda, é possível afirmar que a rule of law estabelecida em expressões promulgadas pelo legislador pode ser considerada mais tarde como uma mera reflexão de princípios jurídicos mais abstratos dos quais outras regras logicamente consistentes com eles podem ser identificadas. O que era direito escrito pode, por meio de fundamentação judicial, tornar­-se direito não escrito.

Ou seja, pode­se aplicar o método indutivo que se aplica aos textos enunciados nas decisões judiciais para se alcançar os princípios gerais também às normas escritas, verificando-se que estas não passam de expressões escritas de princípios não escritos.

Não se pode perder de vista que as expressões direito escrito (written law) e direito não escrito unwritten law (GOLDSWORTHY, J., 2008) não se referem à existência ou à ausência de documentos constitucionais, mas metáforas que simbolizam diferentes perspectivas de interpretação constitucional.

Destarte, a principal diferença entre direito escrito e não escrito, não está na presença ou na ausência de uma Constituição ou documento constitucional escrito, mas na diferença entre um sistema no qual os juízes dão especial significado a proposições gerais e abstratas do direito constitucional, que estão expressas formal e solenemente, e outro sistema no qual os juízes articulam o direito constitucional inferindo princípios gerais de um conjunto de proposições jurídicas não estabelecidas de modo formal ou solene. 

É possível afirmar que essa diferença está cada vez menor, ou seja, nos sistemas de common law a adoção de documentos constitucionais escritos leva à mudança no trabalho interpretativo dos juízes, que não é mais apenas indutivo, de inferir de decisões anteriores princípios gerais a serem aplicados nos novos casos, mas também dedutivo, na medida em que os novos textos constitucionais trazem expressamente proposições gerais e abstratas – tais como os direitos fundamentais – que lhes devem dar significado na sua aplicação ao caso concreto.

E o inverso também é verdadeiro, uma vez que a adoção do constitucionalismo e a positivação dos direitos humanos nas Constituições dos países do civil law introduziram um novo modo de se pensar o direito, quer seja buscando o conteúdo dos direitos fundamentais escritos numa Constituição não escrita, quer seja procurando uma nova interpretação das decisões judiciais, procurando-se nelas um conjunto de proposições e significados que não estão expressos de forma solene (BARBOZA, E., 2014).

Assim, numa jurisdição de common law sem uma previsão constitucional escrita que garanta a igualdade, por exemplo, os juízes terão que inferir um princípio geral de igualdade por meio de um discurso da razão que trata proposições jurídicas como manifestações de princípios mais gerais e abstratos, mais do que previsões formais da lei, antes que eles possam aplicar o princípio geral da igualdade em casos concretos. Já numa jurisdição de common law ou de civil law que tenha a garantia constitucional da igualdade prevista expressamente num texto escrito, os juízes não precisam passar pelo primeiro passo do processo interpretativo, a previsão escrita permite que eles se dirijam diretamente ao trabalho de aplicá-los a casos específicos.

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