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Inúmeros movimentos vêm remodelando o panorama contemporâneo do direito constitucional, possibilitando a formação de um contexto de (des)construção do discurso tradicional, fomentada por movimentos críticos, especialmente do constitucionalismo periférico. Estes caminhos que se abrem, plurais e diversos entre si, compartilham a insatisfação com o discurso constitucional hegemônico, constituído no paradigma moderno, em cumprir com muitas das promessas constitucionais. 

Dentre os temas que revelam essa frustração destaca-se a desigualdade histórica e estrutural entre homens e mulheres, que persiste com maior ou menor intensidade em diferentes realidades (MACKINNON, 2012). É neste espaço que as abordagens do chamado constitucionalismo feminista surgem (BAINES e RUBIO-MARÍN, 2004) e tem se intensificado cada vez mais (BAINES, BARAK-EREZ e KAHANA, 2012). Na região latino-americana, marcada pelo androcentrismo, diversas iniciativas têm se formado em prol desta reconstrução (DA SILVA, BARBOZA e FACHIN, 2019, 2020).

Ainda que seja um movimento diverso, complexo e miscigenado, com abordagens metodológicas e enfoques diversos, aplicado aos mais variados contextos, há um norte comum nas abordagens do constitucionalismo feminista: reivindicar o poder fundamental de redefinir as experiências constitucionais a partir de uma visão de gênero. Nossas reflexões orbitam, assim, em torno da das desigualdades e subordinação das mulheres, tendo como objeto de denúncia e análise as assimetrias de poder entre os gêneros e ponto de convergência a crítica ao patriarcado.

O constitucionalismo tradicional foi – e ainda é em alguma medida – um movimento sem mulheres. Nós fomos excluídas, esquecidas, invisibilizadas e caladas. O direito constitucional foi, desde a modernidade, construído e projetado para um sujeito abstrato de sexo bem definido: o masculino. 

O discurso constitucional nasce e se mantem indiferente às diferenças refletidas no tratamento díspar no acesso a serviços e bens, trabalho, segurança, participação política e mesmo na estrutura e formação do direito (BAINES, BARAK-EREZ e KAHANA, 2012). Como consequência, verifica-se, ainda, em diferentes tradições constitucionais, padrão de discriminação estrutural (CRENSHAW 1991) em relação ao feminino, inerente inclusive às estruturas e mecanismos jurídico-constitucionais, institucionalizada em todos os âmbitos das sociedades. 

O direito constitucional clássico é, portanto, um direito de exclusões. É um campo a ser transgredido – no sentido de atravessar, ir além dos limites. O desafio do constitucionalismo feminista é justamente quebrar o silêncio imposto às mulheres por tanto tempo na teoria constitucional e nos espaços de poder que definem a Constituição. Precisamos construir uma história constitucional que nos inclua, uma Constituição na qual nossa história possa ser contada (SOLNNIT, 2020).

Para edificar um direito constitucional feminista é necessário o protagonismo das mulheres, afinal, nada sobre nós será pensado sem a nossa participação. Assim, o primeiro passo que se coloca é de evidenciar as mulheres que fizeram e fazem o direito constitucional. É, em certa medida, um exercício de resgate constitucional das constitucionalistas que foram silenciadas, recusadas e olvidadas. Recompor esta paisagem feminal do direito constitucional, para além de fazer justiça com legado de importantes pensadoras como Mary Wollstonecraft, Olympe de Gouges e Simone de Beauvoir, nos inspira para avançar. 

A coragem é contagiosa e esse inventário das constitucionalistas nos anima para repensar o direito constitucional por mulheres e para as mulheres. Esta viragem paradigmática não é apenas dos sujeitos constitucionais, mas da própria visão da Constituição, aqui compreendida de modo amplo e não apenas na sua expressão normativa. Ver o direito constitucional pelas lentes do feminismo – aqui entendido como igualdade social, política e econômica entre os sexos (ADICHIE, 2015) – traz uma virada epistemológica que amplia a latitude e seus fundamentos, propondo uma revisão crítica de suas estruturas.

Quanto à latitude, o constitucionalismo feminista representa um desafio global, rompendo com a visão exclusivamente estatal do fenômeno constitucional, abrindo-o para uma dimensão transversal, integrada, comparada e multinível (SLAUGHTER, 2003). Isto não significa que haja uma universalidade constitucional, mas os diálogos entre diferentes experiências constitucionais (PIOVESAN, 2013) permitem demonstrar o caráter estrutural da opressão e estabelecer uma perspectiva mais ampla. Assim, lança-se luz, por meio de comparações (JACKSON, 2010), sobre os diferentes papéis que a Constituição desempenha em relação à justiça de gênero (NUSSBAUM, 2001).

Não há como pensar na proteção constitucional das mulheres desconsiderando o legado da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), na voz de sua interpretação autorizada feita pelo Comitê específico. Na região americana, destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e sua interpretação evolutiva feita pelos órgãos do sistema interamericano – Comissão e Corte. Sob a perspectiva de gênero, o sistema interamericano tem tido a força catalizadora de propiciar avanços seja no campo normativo, seja no campo das políticas públicas (ANTONIAZZI, 2017), fortalecendo a proteção dos direitos humanos das mulheres.

Além desta abertura, o constitucionalismo feminista também provoca mudanças quanto aos fundamentos da teoria constitucional. Os princípios da igualdade e da não discriminação ganham novos contornos com a ideia central de diferença e alteridade (FRASER, 1997). O foco na diversidade é um dos aspectos mais evidentes ​​de uma abordagem feminista do direito constitucional. 

Se, para a concepção formal de igualdade, tal conceito é tomado tendo um ponto de partida abstrato, na concepção substancial, a igualdade é mirada como resultado, tendo como pressuposto as diferenças. Mostra-se, assim, essencial distinguir diferença e desigualdade. O constitucionalismo feminista afirma a igualdade com respeito à diversidade, o reconhecimento de identidades e o direito à diferença com base em uma plataforma emancipatória e igualitária. 

No diálogo expansivo com o direito internacional, os constitucionalismos locais são instados a adotar diferentes perspectivas para realização do direito à igualdade e à não discriminação, identificando e reconhecendo as diferenças de gênero e garantindo que o tratamento dado não se traduza em um obstáculo para fruição de direitos das mulheres.

A diferença é reivindicada aqui em seu sentido plural: as desigualdades e a opressão vividas pelas mulheres não se limitam a um código binário homem/mulher, mas também abrangem raça, cultura e categorias de classe social (DAVIS, 2016). As mulheres não sofrem discriminação num vácuo, mas dentro de um contexto social, trazendo à tona o tema das interseccionalidades (AKOTIRENE, 2019). Com efeito, a discriminação das mulheres está indissociavelmente ligada a outros fatores tais como a raça, classe social, idade, origem étnica, orientação sexual. O constitucionalismo feminista não pretende incluir todos os aspectos da diversidade, mas contém uma chave epistemológica que os conecta com o constitucionalismo (MACKINNON, 2012). 

Portanto, o constitucionalismo feminista transgride o direito constitucional clássico e hegemônico, desencadeando a expansão do discurso constitucional (plural, multinível e transversal) e reinstalando a diferença e a alteridade, em suas especificidades e multiplicidades, como seus fundamentos.

Bibliografia:

  • Antoniazzi, Mariela Morales. O Sistema Interamericano e o impacto de sua jurisprudência. In: Seminário Internacional – Diálogo entre Cortes: fortalecimento da proteção dos direitos humanos. Brasília, ENFAM, 31 mar. 2017.
  • Akotirene, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
  • Baines, Beverley y Ruth Rubio-Marín. The Gender of Constitutional Jurisprudence. Cambridge University Press, 2004. 
  • Baines, Beverley; Daphne Barak-Erez, y Tsvi Kahana (eds). Feminist Constitutionalism. Global Perspectives.  Cambridge University Press, 2012.
  • Crenshaw, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color, 43 Stanford Law Review. 1241 (1991).
  • Da Silva, Christine Oliveira Peter; Estefânia Maria de Queiroz Barboza; e  Melina Girardi Fachin.(Coord) Nowak, Bruna (org.) Constitucionalismo Feminista. Vol. 1. Salvador: Juspodium, 2019.
  • Da Silva, Christine Oliveira Peter; Estefânia Maria de Queiroz Barboza; e  Melina Girardi Fachin.(Coord) Nowak, Bruna (org.) Constitucionalismo Feminista: Expressão das Políticas Públicas Voltadas à Igualdade de Gênero. Vol. 2. Salvador: Juspodium, 2020.
  • Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • Fraser, Nancy. Justice Interruptus. Critical reflections on the “Postsocialist” condition. NY/London, Routledge, 1997.
  • Jackson, Vicki. Constitutional Engagement in a Transnational Era. London: Oxford University Press, 2010.
  • MacKinnon, Catherine. Foreword. In: Beverley Baines, Daphne Barak-Erez, and Tsvi Kahana (eds). Feminist Constitutionalism. Global Perspectives.  Cambridge University Press, 2012.
  • Ngozi Adichie, Chimamandra. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • Nussbaum, Martha. Women and Human Development. A capabilities approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 
  • Piovesan, Flávia. Direitos humanos e diálogo jurisdicional no contexto latino-americano. In: Mariela Morales Antoniazzi; Armin von Bogdandy; Flávia Piovesan (Coord.). Estudos avançados de direitos humanos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. .
  • Slaughter. Anne-Marie, A Global Community of Courts. Harvard International Law Journal. v. 44. n. 1, 2003.
  • Solnnit, Rebecca. De quem é essa história? São Paulo: Cia das Letras, 2020.

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