Desde que o ser humano habita o planeta Terra existe a preocupação em regular o uso, os direitos e deveres a partir de novas tecnologias. Foi assim, na revolução Industrial com a Propriedade Intelectual e em 1890 com a preocupação trazida pela máquina fotográfica. Nesse contexto de inovação, os juristas norte-americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, no artigo intitulado The Right to Privacy, discutiram questões como privacidade e a necessidade de sua proteção como um direito. Esse tema ainda permeia muitas discussões atuais ao redor do mundo e a formação de leis que dispõem sobre a proteção de dados pessoais, a exemplo do General Data Protection Regulation (GDPR) na União Europeia (2016), da California Consumer Privacy (CCPA)  – Califórnia-EUA (2018), e, também, com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no Brasil (2018). 

Agora, o Chile se mostra ao mundo como o primeiro país que consagra a proteção dos neurodireitos em sua Constituição por meio de uma reforma recentemente sancionada, modificando o artigo 19 nº 1 de sua Carta Magna, por meio da Lei No. 21.383: “… O desenvolvimento científico e tecnológico estará ao serviço das pessoas e será realizado com respeito pela vida e pela integridade física e mental. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em pessoas, e deve proteger especialmente a atividade do cérebro, bem como as informações dele;”.

 As neurotecnologias tem despertado o interesse da área jurídica, uma vez que novas aplicações baseadas em técnicas de Inteligência Artificial, a exemplo das técnicas de      Machine Learning (Aprendizagem de Máquina), vêm sendo utilizadas nas mais variadas áreas inclusive para conhecer o comportamento e prever decisões judiciais (Para mais exemplo ver aqui, aqui, aqui, aqui).

Esse movimento não é recente, sendo que a OEA estabeleceu na “Declaração da Comissão Jurídica Interamericana de Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos: novos desafios jurídicos para as Américas” um conjunto de 06 (seis) recomendações visando “chamar a atenção para essas recomendações aos Estados, ao setor privado, à academia e ao mundo científico, a fim de instá-los a participar do processo de adoção de medidas concretas que permitam que essas inovações contribuam para o bem-estar das pessoas e das comunidades”.

A importância da alteração constitucional ora apresentada pelo Chile ao mundo amplia as preocupação e despertam o interesse tanto da área jurídica quanto tecnológica, visto que para a Ciência da Computação tem-se como premissa que algoritmos operam como objetos conceituais indiferentes aos detalhes de implementação, sendo que explicam que: “Em oposição aos seres humanos, os computadores não têm preferências nem atitudes. Se um modelo preditivo for corretamente projetado, será imparcial e não tendencioso ou discriminatório.

Essa discussão se faz necessária visto que os neurodireitos vêm sendo entendidos como um conjunto, ainda não bem definido, de novos direitos humanos emergentes como consequência do desenvolvimento acelerado, ubíquo e disruptivo na aplicação de técnicas de neurotecnologias, sendo essas as tecnologias que envolvem direta ou indiretamente o uso das neurociências. Por exemplo, a aplicação direta de neuromarketing em interface humano-máquina em um site de e-commerce para estimular a compra de um produto ou a aplicação indireta de diversas técnicas em ambiente virtual, Metaverso, podendo causar alterações na capacidade de discernimento ou no livre arbítrio dos usuários, incluindo crianças e adolescentes.

A preocupação em regular os neurodireitos advém das possibilidades de implementação de sistemas e algoritmos cada vez mais complexos e pervasivos, ou seja, a computação está cada vez mais inserida no ambiente físico, digital e virtual de forma invisível para ao usuário, nós, seres humanos. Essa preocupação é legítima e necessária, frente às sociedades de algoritmos, controle, vigilância e transparência, tudo isso agora materializado no Metaverso.

A sociedade baseada em algoritmos foi além da sociedade baseada nas ações de vigiar e punir de Focault de maneira a ser disciplinadora, de modo que o filósofo coreano Byung-Chul Han aborda as sociedades de informação, de exibição, da vigilância e de controle por meio do conceito da sociedade transparente, na qual a confiança é substituída pelo controle, de maneira que a comunicação transparente é uma comunicação que tem um efeito de suavização e nivelamento, ou seja, retoma-se o conceito de pervasivo ou não percebido, sendo que a transparência permite que sejam estabilizados os sistemas dominantes, transformando tudo em informação, uma vez que a transparência torna o ser humano hialino, ou seja, com aspecto vítreo. Os sistemas tudo sabem e tudo vêem, conhecendo os desejos, os anseios, os sentimentos e as intenções, visto que pessoas geram dados que geram conhecimento sobre essas pessoas.

Já dizia Castells: “Imagino que alguém poderia dizer: “Porque é que não me deixa em paz? Eu não quero saber nada da sua Internet, da sua civilização tecnológica, da sua sociedade em rede! A única coisa que quero é viver a minha vida!” Pois bem, se esse for o seu caso, tenho más notícias para si: mesmo que você não se relacione com as redes, as redes vão relacionar-se consigo, enquanto quiser continuar a viver em sociedade, neste tempo e nesse lugar, terá que lidar com a sociedade em rede. Porque vivemos na Galáxia Internet.”

Portanto, o pequeno trecho da constituição chilena será lembrado historicamente e abre novos pontos de reflexão podendo-se elencar alguns: (i) saberemos distinguir realidade de virtualidade? (ii) qual será a relação entre os seres humanos, as máquinas e a natureza? (iii) não havendo ausência de dados, informação e conhecimento, haverá sabedoria? (iv) como as neurotecnologias afetarão os seres humanos? (v) quão humano ainda seremos no futuro?.

Além disso, o Chile expõe ao mundo a necessidade de discussão e reflexão sobre o direito de ser informado e a autonomia para exercer a autodeterminação informativa, ambos relacionados com discussões sobre direitos humanos, livre arbítrio, autonomia, direitos fundamentais, entre outros sem esquecer de considerar que nós, seres humanos, temos um consenso em proteger a dignidade da pessoa contra o uso malicioso ou negligente de qualquer tecnologias, neural ou não, e, ainda, que não se pode impedir os avanços tecnológicos. Há que se ponderar que as decorrências das neurotecnologias aos neurodireitos, do ponto de vista dos direitos humanos, ainda não foram totalmente mapeadas ou consideradas, mas há que se ponderar em uma balança com muitos pratos: riscos, benefícios, efeitos, regulação, autorregulação, humano e máquina. 

A solução não é binária, sim ou não, e envolve os mais variados atores e interesses: privado, público, Big Techs, consumidores, internautas, pacientes, pequenas e grandes empresas, startups, além de profissionais das mais variadas áreas de atuação. Não basta olhar para a regulação, mas para as responsabilidades trazidas pelas novas legislações e pelo dever de reparar danos decorrentes das neurotecnologias em qualquer ser humano, vulnerável ou não. 


Cita recomendada: Cinthia Obladen de Almendra Freitas , “Neurodireitos: O exemplo do Chile e a regulação das neurotecnologias”, IberICONnect, 8 de febrero de 2022. Disponible en: https://www.ibericonnect.blog/2022/02/neurodireitos-o-exemplo-do-chile-e-a-regulacao-das-neurotecnologias/

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