A presente coluna vai ser dividida em duas partes e vai se dedicar a apresentar algumas noções basilares sobre o direito à ciência bem como explicitar necessárias pistas de investigação para um mais completo reconhecimento e desenvolvimento deste direito, em especial das obrigações positivas que dele derivam. Para ilustrar a crescente interrelação entre direitos constitucionais domésticos e direito internacional, particularmente relevante para os direitos fundamentais ou humanos, essa breve reflexão acerca do direito à ciência vai se servir de alguns exemplos colhidos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro e que foram utilizados quando explorei com maior detalhe os deveres estatais advindos do direito à ciência em um artigo dedicado ao tema.

O direito à ciência (direito a usufruir dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações) não é um direito fundamental frequentemente positivado em constituições nacionais, mormente em sua faceta de direito social, apesar de ter sido reconhecido e nomeado explicitamente em documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Essa ausência de constitucionalização e as idiossincrasias inerentes aos direitos reconhecidos em instrumentos internacionais dificulta um completo reconhecimento do direito e contribui para uma insuficiente definição das obrigações estatais correlatas. É verdade que a pandemia de COVID-19 e a crescente importância da ciência e da tecnologia em praticamente todos os aspectos da atualidade parecem ter renovado a atenção para deste direito. Ainda assim, por vezes se escreve sobre a liberdade científica, sobre os conflitos entre o acesso à ciência e os direitos dos autores, não havendo um concreto desenvolvimento sobre as demais facetas deste direito e os correspondentes deveres estatais.

O direito à ciência foi explicitamente enunciado no art. 15 do PIDESC, estabelecendo-se suas dimensões principais: o direito a usufruir dos benefícios do progresso científico, a liberdade de ciência e o direito de participar da vida cultural, com as derivações possíveis destas dimensões. Essa fonte normativa, com suas idiossincrasias, permite afirmar a existência deste direito como direito humano ou fundamental e seu conteúdo normativo específico permite dizer que não se trata de um caso de proliferação artificial dos direitos.

Para além das fontes jusinternacionais, em algumas constituições encontra-se a menção à liberdade científica ou acadêmica, que pode ser acrescida, em cenários domésticos, destas dimensões positivas de direito social ou cultural por força das normas internacionais, respeitando-se a diferente natureza normativa destas fontes. Ademais da dimensão individual, por vezes também se encontra positivada a autonomia científica das universidades e eventuais deveres de financiamento estatal.

Um exemplo ilustrativo desta moldura normativa para o direito à ciência observa-se na ordem jurídica brasileira. A liberdade de expressar e comunicar atividades científicas é protegida em meio aos direitos e garantias individuais, assim como a propriedade intelectual, ainda que moldada por uma dimensão coletiva ou social (art. 5º, IX, XXIX, CRB/88). Ao lado destas previsões, garante-se um direito defensivo contra o mau uso da ciência (art. 15, I, CRB/88) e assegura-se a autonomia universitária (art. 207), bem como se impõem obrigações de apoio ao progresso científico (arts. 218, 219 CRB/88). Por fim, há uma imposição para todos os entes que compõem a federação de assegurar os meios de acesso à cultura, educação e ciência (art. 23, V CRB/88). Quanto à interação do direito interno com o direito internacional, possível por variados caminhos, no caso brasileiro a cláusula de abertura ancorada no art. 5º, parágrafos 2º e 3º, CRB/88, permite garantir validade interna a normas internacionais de direitos fundamentais ou humanos, na forma aí estabelecida. Esse conjunto normativo fornece base ampla para o desenvolvimento do direito à ciência. Partindo dessa base constitucional há diversas leis no Brasil que tratam do desenvolvimento científico e tecnológico, que cuidam da aplicação da ciência à saúde, que disciplinam a bioética e a pesquisa científica etc.

Talvez se pudesse esperar que, diante de tal quadro normativo, o direito à ciência fosse explicitamente invocado e servisse de fundamento, para além da dimensão negativa da liberdade científica, quer para a estruturação e implementação de políticas públicas, quer para a resolução judicial de questões jusfundamentais. Não obstante, não se verifica ainda a menção, na jurisprudência brasileira, a um direito autônomo à ciência.

Diante do perigo da proliferação artificial de direitos fundamentais poder-se-ia exatamente perquirir se seria de fato necessário o reconhecimento de um direito à ciência e como um tal direito autônomo e específico poderia incrementar a proteção e a promoção do valor da dignidade da pessoa humana, fim último dos direitos fundamentais.

Sem mesmo ultrapassar o âmbito do senso comum, desafios recentes colocados pela pandemia – a diversidade de estratégias assumidas em variados quadrantes do globo, a desigualdade no acesso a vacinas, a dificuldade de obter informações cientificamente confiáveis, para citar alguns fatos – parecem apontar para a relevância do direito à ciência como direito autônomo. O mesmo se pode pensar em face do avanço tecnológico, do crescimento do uso da inteligência artificial e do incremento das desigualdades criado diante das dificuldades de acesso e uso da internet. Esses exemplos, de proporção mundial, possibilitam defender um conteúdo específico de um autônomo direito à ciência, que é necessário e representa uma relevante mais-valia para a dignidade humana, não protegida outros direitos já consagrados.

De fato, como é típico dos direitos fundamentais ou humanos, comparecem por vezes associados ou em conflito em variadas situações normativas ou práticas. Assim, por exemplo, o direito à saúde e à educação constituem campo fértil para o descobrimento de facetas relativas ao direito à ciência. Ainda assim, quando se pesquisa o direito à ciência verifica-se que, mesmo tendo ocorrido sensível desenvolvimento desde sua consagração inicial, a ausência de reconhecimento de um direito autônomo à ciência faz com que não se tenha clareza dos deveres estatais correlatos, especialmente no que tange aos aspectos positivos deste direito.

A análise da jurisprudência do STF brasileiro é bastante elucidativa neste sentido. Por um lado, deixa patente a relevância normativa da ciência e do progresso científico quer para a proteção da dignidade da pessoa humana diretamente considerada, quer para a estruturação das necessárias políticas públicas. Por outro lado, revela também a lacuna na elaboração e definição dos deveres estatais que deriva da ausência de efetivo reconhecimento de um direito autônomo à ciência. De qualquer maneira, essa análise abre caminho para a inadiável elaboração e pode servir de inspiração para o mesmo exercício em outras jurisdições e tribunais internacionais, com decisivos resultados na afirmação do direito à ciência.

Na jurisprudência do STF a relevância da ciência e do progresso científico aparecem com destaque nos casos relativos ao direito à saúde. Este direito foi positivado de forma ampla na Constituição brasileira, conjugado com a estruturação de um “Sistema Único de Saúde”, levando à necessidade de concretização legislativa, de definição dos deveres estatais e da estruturação do serviço público correspondente, com uma adequada divisão de ônus e recursos entre os três planos da federação. A primazia das competências típicas do legislador democrático nessas tarefas concretizadoras normativas e da Administração Pública nas tarefas práticas tem sido enormemente contestada diante do Poder Judiciário; a judicialização da saúde tornou-se fenômeno desafiador no cenário das políticas públicas no Brasil.

No cenário de judicialização da saúde, o STF se debruçou várias vezes sobre o direito à saúde e tangenciou, assim, o papel da ciência e do progresso científico, especialmente na definição, pelo Poder Público, dos medicamentos e procedimentos adequados para diversas doenças e situações, bem como das obrigações de serviço público reflexas. Igualmente relevante se mostrou a decisão na qual o STF foi chamado a determinar se a Administração Pública tinha o dever, por sua agência especializada, de atualizar o rol de medicamentos de forma a incluir novos medicamentos e procedimentos de entrega compulsória pelo Poder Público. Neste caso o Tribunal agiu com deferência em face das decisões legislativas e administrativas, respeitando suas competências de definição das políticas públicas e de destinação dos recursos orçamentários, uma vez que calcadas nas evidências científicas disponíveis.

A necessidade de pautar as políticas públicas na área da saúde pelas evidências fornecidas pela ciência, de modo a que o Poder Público cumpra suas obrigações em relação ao direito fundamental à saúde garantindo o acesso ao progresso científico – seja de forma positiva, fornecendo os medicamentos e procedimentos adequados cientificamente, seja de forma negativa, protegendo os cidadãos do mau uso da ciência – é uma constante na jurisprudência do STF. A ciência também foi o fio condutor em diversas outras decisões, como, por exemplo, acerca: da discutida “pílula do câncer”, da importação de produtos de tabaco, da produção de amianto, da produção de pesticidas, da descriminalização do aborto em certas hipóteses, da lei de biossegurança e, mais recentemente, de medidas necessárias para o combate à pandemia de COVID-19.

De fato, a ausência de uma indicação explícita pelo Tribunal de um direito à ciência não invalida que se possa deduzir de suas decisões a existência de um direito autônomo e multifacetado à ciência no ordenamento jurídico brasileiro. O claro ancoramento constitucional da ciência e do progresso científico permitem derivar posições subjetivas de caráter jusfundamental não apenas de natureza negativa (proteção da liberdade científica ou proteção contra o mau uso da ciência), mas também de natureza positiva (o benefício das aplicações do progresso científico, o acesso à ciência). O Tribunal cunhou várias passagens em que essa dimensão individual e jusfundamental fica clara; ilustrativa, dentre outras, a seguinte: “A Lei de Biossegurança como instrumento de encontro do direito à saúde com a própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas, diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que é a sua própria higidez físico-mental.”

Por certo é o direito à saúde o que mais levou o STF a buscar apoio na incorporação normativa da ciência, mas também o direito à educação convoca frequentemente o recurso à ciência em sua faceta jusfundamental. O Tribunal foi chamado a decidir sobre um direito público subjetivo ao “homeschooling” e afirmou, em 2018, que o acesso ao conhecimento científico é uma dimensão subjetiva garantida pelo direito à educação.

O Tribunal teve que decidir inúmeras outras questões relativas à liberdade de ciência, à destinação de recursos públicos para financiar o progresso científico, bem como questões relativas ao meio ambiente, analisadas em outra oportunidade em que busquei aí base jurídica para o reconhecimento de um amplo direito à ciência no ordenamento jurídico brasileiro.

Continua…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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