Anteriormente analisamos a possibilidade de conceber as futuras gerações (FG) como titulares atuais de direitos fundamentais; interessa, agora, perscrutar que direitos teriam tais gerações.


Que direitos fundamentais atuais para as gerações futuras?

Segundo os “Princípios de Maastricht sobre os direitos humanos das futuras gerações” (não são direitos fundamentais/constitucionais), (5.b) “Todos los derechos humanos son universales, indivisibles, interdependientes e interrelacionados. Las generaciones futuras deben disfrutar de todos los derechos humanos individuales y colectivos, incluidos, entre otros, los derechos civiles y políticos, los derechos económicos, sociales y culturales, el derecho a un ambiente limpio, sano y sostenible, el derecho al desarrollo, el derecho a la autodeterminación y el derecho a la paz” e que (6.a) “Las generaciones futuras tienen derecho al disfrute igualitario de todos los derechos humanos. Los Estados deben garantizar los derechos de las generaciones futuras establecidos en estos Principios sin discriminación de ningún tipo. Los Estados y otros titulares de obligaciones deben abstenerse de cualquier conducta que razonablemente pueda dar lugar, o perpetuar, cualquier forma de discriminación contra las generaciones futuras.”

Esses princípios se preocupam também em unir equidade inter- e intrageracional, explicitando obrigações estatais de promover, respeitar e proteger tais direitos. O documento é um primor. Não obstante, encontro sérias dificuldades para “traduzi-lo” para o direito e a prática constitucional. Já à partida, é preciso não esquecer que os direitos fundamentais plasmados nas constituições não seguem a ideia de mínimo de proteção, como é frequente com as normas internacionais de direitos humanos. As constituições, ademais, não devem postular deveres morais, devem prescrever condutas com alguma possibilidade de contraste judicial. 

É curioso que diversos sistemas tutelem o direito de herança, mas, em geral, não tributem essa transferência de propriedade de forma consistente com a implementação da alegada equidade intra- e intergeracional. Os membros das novas gerações nascem e vivem em radical iniquidade. Se fôssemos realmente aplicar os “Princípios de Maastricht”, considerando todos os direitos para as FG, como preservaríamos o mínimo de coerência do sistema jurídico?

Não quero fazer um discurso conservador que não se abra para a necessidade de evolução do direito, especialmente do direito que cuida dos direitos; afasto-me de posições que, assim, criam empecilhos, por exemplo, para a consagração e efetivação de direitos sociais. As dificuldades que vislumbro e que sinceramente coloco para reflexão relativamente às FG são um convite à sua superação e à criação de instrumentos jurídicos inovadores. Não se trata de dificuldades ligadas a posições ideológicas que visam a embarreirar o acesso a direitos; trata-se de dificuldades relativas à necessidade de instrumental adequado para a aplicação dos direitos com consistência.

Se as FG devem ser atuais titulares de direitos fundamentais, quais direitos devem titularizar? O direito de existir? O direito a um meio-ambiente saudável? Também os outros direitos fundamentais consagrados na constituição? Quem faria essa seleção e com que base jurídica? Defensores de direitos atuais para as FG poderão dizer: mas, se o planeta não existir, as FG não terão direitos, então temos que conceder-lhes direitos atuais para que tenham o direito de ter direitos quando vierem a existir. Mas será que essa ideia (intenção, dever moral?) de preservar o planeta para que as FG possam existir é passível de ser configurada como direito fundamental? Talvez essa seja realmente a pergunta central que devamos responder. Não seria melhor pensar em uma outra categoria que um direito fundamental atual para sujeitos inexistentes? 

Para argumentar, se pretendemos conferir “direitos ambientais” atuais a FG precisamos ser claros e construir bases jurídicas e normativas para uma tal titularização seletiva de direitos. Teremos que definir estes direitos (será viável?) e ser transparentes neste processo argumentativo.

A argumentação desenvolvida pode até parecer absurda, mas me parece um exercício necessário. O que é um meio-ambiente saudável? Inclui ter uma moradia? Se assim for, a atuação estatal terá também que assegurar moradia para as FG? Mas os Estados onde há um tal direito asseguram-no para as gerações presentes? Poderão deixar de assegurá-lo agora para fazê-lo no futuro? Poder-se-ia contra-argumentar que esse é um direito social e não plenamente exigível. Mas o mesmo raciocínio pode ser desenvolvido para liberdades que inevitavelmente sofrerão consequências de escolhas, atuações e omissões atuais. Como resolver os conflitos entre direitos se as gerações futuras tiverem atualmente os mesmos direitos que as gerações atuais, ou mesmo apenas alguns? Como equacionar a representação das FG na legislatura e em eventuais disputas judiciais para defender seus direitos? Como resolver conflitos entre direitos colidentes das próprias FG? Se enveredarmos por um tal caminho e o levarmos a sério, não teremos solução nem jurídica nem prática, me parece.

Os direitos políticos ilustram as dificuldades jurídicas que temos. Se as FG devem titularizar presentemente os mesmos direitos que as gerações atuais, o que diremos do direito ao voto e à participação política? Faremos malabarismos argumentativos para dizer que têm tais direitos presentemente, mas não os podem exercer, assim como as crianças? Criaremos mecanismos de representação política das FG por meio das gerações atuais? Se criarmos tais mecanismos (fictícios), estaremos efetivamente concedendo direitos fundamentais atuais a estas gerações? Como estruturar essa situação em termos de consistência do sistema em relação às crianças, que não podem votar e para as quais não temos instrumentos de representação política? Podemos cogitar de Ombudsman ou defensores do povo, de trusteships, do próprio ministério público em certos sistemas, mas sejamos consistentes em termos jurídicos: estaremos realmente conferindo direitos fundamentais atuais a FG ou criando mecanismos de cuidar de seus interesses implementando deveres jurídicos atuais? 

Também o recurso a direitos coletivos poderia ser aventado, partindo do exemplo do direito ao desenvolvimento no direito internacional. Trata-se de direitos reconhecidos a um grupo sem a necessidade de identificação individual dos componentes. Não me parece viável, no entanto, transpor esta construção, sem mais, para as FG; trata-se de grupo ainda inexistente. Essa inviabilidade não me parece aplicar-se à concepção de FG como grupo detentor de interesses coletivos a serem levados em conta pelas presentes gerações e pelo Estado. A noção de risco e a necessidade de identificação concreta das vítimas de eventuais violações, de modo a prover para o futuro, pode ser mitigada, também em proveito das gerações futuras, sem reconhecer-lhe direitos atuais, como foi feito no caso Urgenda.  

Na verdade, a ideia de prever (e prover) para o futuro é ínsita ao direito e visa, exatamente, a manter certas estruturas sociais e econômicas e garantir-lhes previsibilidade. Pense-se na mais básica regra penal construída para a proteção da liberdade: nullum crimen sine praevia lege. É inegável, o direito ocupa-se de disciplinar o futuro. Poder-se-ia sustentar que isso não quer dizer que o direito se volte à proteção das FG. Mas isso também não parece corresponder ao que se vê em diversas ordens jurídicas (não apenas indígenas), ainda que as razões de prover para o futuro sejam variadas. As ordens jurídicas, mesmo ocidentais, carregam previsões jurídicas voltadas à proteção das FG e à manutenção da ordem jurídica estabelecida para o futuro. Veja-se o preâmbulo da Constituição dos EUA: “We the People of the United States, in order to form a more perfect Union, establish justice, insure domestic tranquility, provide for the common defence, promote the general welfare, and secure the blessings of liberty to ourselves and our posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.”

A previsão de cláusulas pétreas constitutionais mostra que o direito reconhece e lida com a intertemporalidade, com a sucessão de gerações. Uma pergunta clássica do direito constitucional refere-se à legitimidade das gerações presentes para vincular as FG por meio das constituições. Constituições com cláusulas pétreas estariam violando os direitos políticos e democráticos das gerações futuras, que não podem, sem mais, alterar toda a constituição? 

A preocupação com a intertemporalidade e com o futuro se faz sentir em todos os ramos do direito, claro que com objetivos distintos. Pense-se: nas regras de sucessão, assegurando a propriedade para as FG dos proprietários; na construção da cláusula rebus sic stantibus; nas regras orçamentárias e de planejamento público; nas diversas normas urbanísticas e ambientais que exigem planejamento prévio e estudos de impacto; nos sistemas previdenciários e assim por diante. Pense-se, por fim, em categorias como a da expectativa de direito, que protege posições jurídicas para as quais ainda não se concluiu a formação das condições exigidas para a aquisição do direito.

Parece-me que podemos somar essas precipitações específicas encontráveis no direito a um olhar mais urgente ligado à crise climática, mas não podemos dizer que o direito não se preocupa com o futuro ou com as FG, nem tampouco que não há mecanismos jurídicos para tanto. 

Os próprios direitos fundamentais, previstos como normas objetivas nas constituições, por óbvio também visam às FG; o conjunto de direitos fundamentais – elemento constitutivo destas ordens – não é estruturado para viger com data de validade. Os direitos tidos como fundamentais e assim plasmados constitucionalmente por uma determinada geração o são também visando as gerações vindouras; não é por acaso que os direitos figuram com frequência entre as cláusula pétreas.

Quando se discute, por exemplo, a constitucionalidade de uma determinada norma em confronto com um direito fundamental, no controle abstrato de constitucionalidade, não se tem em mira um concreto titular do direito, mas todos os possíveis, eventuais, titulares deste direito, ou melhor, o direito como norma do sistema. Neste sentido, todos os direitos fundamentais positivados numa constituição são tutelados para as gerações atuais e futuras, parametrizando, neste contexto, as condutas estatais. Isso não é o mesmo que dizer que as FG são atuais titulares de direitos fundamentais.

Talvez seja melhor cogitar de uma proteção dinâmica dos direitos fundamentais, apontando para um continuum entre as várias gerações; direitos que, para além de normas subjetivas, constituem-se em normas estruturantes da ordem jurídica. Essa ideia parece sugerir que devamos atualmente nos empenhar na conservação das condições fáticas necessárias para que a ordem constitucional continue a contar, no futuro, com tais condições de existência. A ênfase desloca-se para os deveres e restrições de direitos atuais de sujeitos atuais, bem para a positivação e concretização de deveres estatais.

A próxima e última coluna vai alinhavar, em forma de conclusão provisória, as perguntas e caminhos necessários no enfrentamento das questões colocadas.

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