“Climate change is a human rights issue.” (Ingrid Leijten)

A presente coluna, que avança algumas ideias sobre a sustentabilidade como conceito justiciável, será composta de duas partes. Na primeira parte, o tema é introduzido e são apresentados pontos inovadores trazidos pela decisão do caso Urgenda na Holanda. A segunda parte será dedicada à análise do potencial transformador dos direitos humanos a partir desta decisão e de outros recentes avanços registrados na judicialização da questão climática. 

As grandes questões societais do nosso tempo desafiam os estudiosos do Direito Constitucional a partir de pautas cada vez mais variadas. Se em algum momento se chegou a afirmar a garantia de certas categorias de direitos fundamentais, mormente as liberdades no contexto ocidental, as atuais ameaças contra a democracia e o Estado de Direito jogam por terra tal pensamento. Num plano mais concreto, a pandemia e o aquecimento global, a guerra em solo europeu e a crise energética expõem a vulnerabilidade das condições materiais de vida no planeta e colocam em xeque a concretização dos valores do constitucionalismo.

A busca por respostas para essas questões pode enveredar pela construção de novas categorias jurídicas, pode igualmente valer-se de categorias basilares do Direito Constitucional, reforçando seu significado e sua força jurídica. Assim tem ocorrido com os desafios inadiáveis de sustentabilidade: os direitos fundamentais ou humanos têm comparecido com potencial transformador, renovando seu papel de categoria central do Estado Constitucional de Direito. 

Para além de uma necessária intersecção entre direitos humanos e sustentabilidade, plasmada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), é possível identificar obstáculos comuns, com destaque para a definição de obrigações positivas para os Estados, a redefinição das fronteiras entre os Poderes estatais e a derivação de obrigações para agentes privados. Nesse cenário, a justiciabilidade torna-se essencial, visto que a efetividade de direitos e sustentabilidade frequentemente depende do recurso ao Judiciário e dos meios processuais disponíveis.

O tratamento das questões ambientais a partir dos direitos fundamentais não é novo (SAVARESI; SETZER) e tem sido particularmente relevante no que tange às mudanças climáticas (PEEL; OSOFSKY). Considerando que mudanças climáticas e sustentabilidade não são conceitos intercambiáveis, é necessário partir destes avanços e investigar o papel que os direitos podem desempenhar no desenvolvimento da sustentabilidade como categoria justiciável.

Essa pergunta poderia ser respondida por várias perspectivas, a começar pela assunção ou afastamento de um viés antropocêntrico, pela possibilidade de recurso a direitos ou conceitos amplos como o direito ao desenvolvimento sustentável (VANDENHOLE), o direito ao desenvolvimento (ANDREASSEN), o desenvolvimento humano (OLOWU), a justiça climática, a justiça ambiental (GONZALEZ; ATAPATTU), a equidade ambiental intergeracional (SPIJKERS). De fato, a moldura clássica do Direito Internacional está em evolução na tentativa de desenhar meios legais para impor aos Estados (primeiramente, mas não só) obrigações de enfrentamento das alterações climáticas e de incremento da sustentabilidade. Ao nível nacional também se encontram variados meios jurídicos com estes objetivos. 

Quatro decisões domésticas permitem uma aproximação com um primeiro potencial transformador dos direitos para justiciabilidade da sustentabilidade: o caso Urgenda e o caso Shell, na Holanda, o caso da Lei de proteção climática, na Alemanha, e a decisão sobre o Fundo Clima, no Brasil (ECLI:NL:HR:2019:2007: Urgenda; ECLI:NL:RBDHA:2021:5339: Shell; Beschluss vom 24 Marz 2021-1BvR2656/18: Klimachutzgesetz; ADPF 708: Fundo Clima). Não se trata das únicas decisões sobre a matéria, mas certamente trata-se de decisões paradigmáticas: argumentos baseados no impacto que a deterioração ambiental tem sobre os direitos fundamentaram avanços pioneiros no sentido da imposição de deveres positivos aos Estados (LEIJTEN; ECKES).

O caso Urgenda foi decidido em última instância em dezembro de 2019 pela Corte Suprema da Holanda após 7 anos de processo. A Corte decidiu que o Estado tem deveres advindos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, especialmente os arts. 2 e 8, e lhe impôs obrigações positivas concretas de redução da emissão de gases de efeito estufa (GEE) de modo a cumprir seus deveres de proteção. 

Em maio de 2021, o Tribunal Distrital de Haia ordenou à Shell reduzir a emissão de GEE (o processo ainda está em curso); trata-se da primeira decisão judicial a fazer tal imposição para uma empresa privada. O fundamento da decisão foi muito similar ao caso Urgenda e afirmou que a empresa tem, segundo o Direito holandês, o dever de cuidado (art. 6:162 do Código Civil holandês) que foi ligado aos direitos previstos na CEDH. 

Na Alemanha, em abril de 2021, o Tribunal Constitucional Federal decidiu uma queixa constitucional sobre a constitucionalidade de aspectos da Lei de proteção climática, concluindo que a lei violava direitos fundamentais das gerações mais novas e futuras e precisava ser melhorada. O foco da decisão centrou-se mais especificamente nas liberdades fundamentais das novas gerações; se a política prevista na lei fosse seguida, a redução futura da emissão de gases viria a representar uma restrição severa e desproporcional das liberdades das gerações vindouras. A lei foi tida como violadora destas liberdades visto que não lhes oferecia proteção suficiente.

Essas 3 decisões, apenas brevemente expostas, comportam uma multiplicidade de aspectos e não são análogas em sua integralidade, permitem, no entanto, trazer à luz o potencial transformador dos direitos humanos para a judicialização das mudanças climáticas e da sustentabilidade. Dentre elas, o caso Urgenda se destaca em virtude dos seguintes aspectos pioneiros (apontados, dentre outros, por LEIJTEN; BURGERS; STAAL; SPIER; NOLLKAEMPER; BAKKER; ECKES):

– o uso dos direitos humanos (os arts. 2 e 8 da CEDH) conectados com as alterações climáticas como a principal base para impor obrigações positivas ao Estado (rights-based approach);

– a ausência de uma imposição concreta de legislação (afastando as fortes críticas sobre uma possível violação da competência do Parlamento) combinada com o reconhecimento de uma obrigação positiva relativamente a um objetivo (a redução da emissão de GEE) a alcançar pelo Estado como resultado de um compromisso internacional jurídico e vinculante;

– a afirmação do caráter vinculante, na perseguição do objetivo, da observância dos deveres estatais relativos aos direitos humanos invocados;

– a análise inovadora sobre os riscos de violação a direitos resultantes de alterações climáticas, especificamente no que tange à exigência de “risco real e eminente” e “diretamente ameaçador das pessoas envolvidas”;

– o desenvolvimento da dimensão coletiva de direitos individuais em um “cenário ambiental”;

– o uso de evidência científica ligado (i) à ausência de justificativa suficiente pelo Estado para não perseguir o objetivo e (ii) à ausência de apresentação de medidas alternativas na busca do objetivo, como fundamento para impor obrigações positivas ao Estado, afirmando o caráter obrigatório da perseguição do objetivo;

– a afirmação de deveres e obrigações positivas para um Estado individualmente considerado em face de problemas globais que demandam a ação de outros atores.

Essas significativas inovações do caso Urgenda no que tange à judicialização da questão climática parecem abrir importantes caminhos para a sustentabilidade. Nesta primeira breve exposição o que se faz é explorar os seguintes aspectos, buscando encontrar seu tratamento nas outras decisões domésticas citadas: (i) a imposição judicial de obrigações positivas ao Estado (e a uma empresa privada); (ii) a aceitação da invocação de direitos de gerações futuras sem a necessidade de identificar pessoas específicas sofrendo violações ou ameaças atuais ou iminentes; (iii) a afirmação de obrigações e deveres individuais de implementação de medidas proporcionais e suficientes mesmo diante do reconhecimento do caráter global do problema e da responsabilidade de outros atores; (iv) o uso de evidência científica confiável disponível para embasar a imposição de obrigações positivas concretas para o Estado (e uma empresa privada). 

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