Introdução
O debate acerca das mudanças climáticas e seu enfretamento tem se espraiado para além do palco estritamente político e passado a ocupar também o anfiteatro judicial. Ações coletivas diversas têm sido utilizadas para obrigar Estados e outros atores (como empresas privadas) a implementarem concretas políticas de sustentabilidade. Urgenda e Shell, na jurisdição holandesa, assim como o caso da Lei Climática, decidido pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, são casos já clássicos da litigância climática perante tribunais domésticos. A matéria também tem sido levada a tribunais supranacionais, como ilustram casos propostos perante o Tribunal Europeu em Estrasburgo (Duarte Agostinho, KlimaSeniorinnen v. Switzerland, Carême v. France), e tem sido tangenciada a partir dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos.
Os direitos humanos assumem o papel de elementos essenciais nesta (legítima) estratégia concretizada pela public interest litigation ou climate litigation, servindo para avançar medidas urgentes e, em interpretações inovadoras, fundamentando, juntamente com outras normas, deveres positivos para o Estado. Os desdobramentos a que têm se prestado os direitos humanos encaixam-se na ideia de uma necessária capacidade evolutiva na proteção da dignidade da pessoa humana, visto que os desafios societais e climáticos renovam-se a ritmo acelerado. A partir do direito à vida, por exemplo, em aplicação sistemática com outras normas, fundamenta-se o dever do Estado de tomar medidas efetivas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Cogita-se de conferir direitos a entidades da natureza. Amplia-se a capacidade postulatória de fundações. Mas não se para por aí, advoga-se a titularidade de direitos pelas futuras gerações (FG). Vivencia-se uma ubiquidade dos direitos ou o que se tem chamado, pejorativamente, de proliferação dos direitos, fenômeno que provoca reações diversas, exigindo análise circunstanciada.
A reflexão acerca da evolução do sistema de direitos tem me ocupado há certo tempo. Não me parece adequado tomar uma posição inflexível a favor ou contra mais ou menos direitos. Não se trata, sem mais, de estancar uma alegada inflação de direitos, nem tampouco de elevar artificialmente à categoria de direito humano ou fundamental qualquer aspiração humana. Trata-se exatamente de reconhecer os direitos como essenciais meios jurídicos de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, passíveis de evolução, reinterpretação e inovação. Na mesma toada, não se trata de negar a gravidade e urgência da crise climática, nem tampouco o potencial dos direitos nessa seara. Estas premissas, que se configuram claras no sentido da defesa dos direitos, devem restar assentadas.
Por outro lado, diante de ameaças constantes também a direitos tidos como assentados, como, por exemplo, a liberdade de expressão, a liberdade acadêmica, a liberdade de religião, por vezes associadas ao crescimento de regimes não democráticos, populistas e de “democracias iliberais”, parece-me importante, exatamente em prol dos direitos, propor a presente reflexão. Levar os direitos a sério implica, a meu ver, no plano teórico, desenvolver e embasar construções consistentes que permitam fortalecer o significado e a funcionalidade jurídica dos direitos – para além de elementos retóricos, de aspirações políticas ou de assunções estritamente morais –, visando à sua aplicação e concretização prática. Tais construções mostram-se imprescindíveis também diante da crescente judicialização das demandas societais, o que coloca para juízes, com as características e limitações de suas competências, hercúleos desafios e a necessidade de instrumental adequado.
As (cinco) colunas que ora rascunho propõem essa reflexão, especificamente voltada para um aspecto do atual “discurso” que se tem popularizado: a defesa de direitos para as FG. Pretendo trabalhar este tema de forma mais detida em um artigo científico em breve. Nestas colunas queria dividir com nossos leitores da criativa comunidade lusófona e de habla castellana questionamentos incipientes que reputo inafastáveis em uma perspectiva constitucional e de direitos fundamentais. A reflexão vai ser assim exposta: apresento em linhas gerais a discussão acerca dos direitos das FG; aponto a necessidade de distinguir entre direitos humanos (internacionais) e direitos fundamentais (constitucionais), introduzo a ideia de (in)viabilidade de se conferir direitos fundamentais (constitucionais) atuais a FG e concluo com algumas perguntas para que possamos dialogar sobre esta matéria.
Brevíssima notícia da discussão atual sobre os direitos das gerações futuras
O caso Urgenda foi um divisor de águas na litigância climática e revelou o potencial dos direitos nesta seara. Os direitos das FG foram invocados, mas o Tribunal holandês não adentrou esse assunto, entendendo que os direitos das atuais gerações bastavam decidir o caso.
A invocação dos direitos das FG tem crescido e sido utilizada de maneira variada. Um recente número do blog do European Journal of International Law, EJIL: Talk!, publicou um debate sobre a matéria que bem demonstra a sua complexidade. Há muitos outros autores se dedicando a este tema e explorando-o por diversos ângulos, mas os que tomaram parte neste debate ilustram as principais posições sobre o assunto. Stephen Humphreys havia publicado um artigo provocativamente intitulado Against future generations, se mostrando criterioso e crítico em relação a um alegado discurso que se vale das FG. Esse artigo foi analisado por Margaretha Wewerinke-Singh, Ayan Garg e Shubhangi Agarwalla, e Peter Lawrence, no referido debate, no qual também o próprio Humphreys respondeu às críticas com seu Taking Future Generations Seriously.
Em Against future generations, Humphreys parte da ideia de responsabilidade – especificamente diante da questão climática – e destaca três clivagens relevantes, entre países, entre classes e entre gerações. O autor chama a atenção para a clássica discussão de que se estariam responsabilizando países pobres ou em desenvolvimento de forma desproporcional e que estes seriam os mais vulneráveis diante da mudança climática. O autor expõe a sedução retórica de se defenderem as FG, se pergunta quem somos “nós” – as presentes gerações – e quem são “eles” – as futuras gerações –, expõe a dificuldade de tratar desta questão por meio do direito internacional e diante da enorme distinção política, econômica e geográfica da afetação dos diversos Estados pela questão climática. Aponta, ainda, a dificuldade de traçar linhas divisórias entre as gerações e de assinalar as responsabilidades mútuas. Desnuda, ademais, o perigo de negligenciar atuais desigualdades projetando uma imaginária solidariedade futura, o que apenas levaria a transformar tais desigualdades em um elemento constitutivo da ordem mundial, elidindo responsabilidades atuais. De forma eloquente, Humphreys indica que o melhor caminho para cuidar das FG é tratar as desigualdades atuais com atuações concretas; cuidar das gerações atuais teria muito mais impacto para as FG que o discurso fundado nestas mesmas FG.
Margaretha Wewerinke-Singh, Ayan Garg e Shubhangi Agarwalla, assim como Peter Lawrence, sintetizam os argumentos que têm sido utilizados na defesa dos direitos das FG. Os primeiros publicam seus argumentos em resposta a Humphreys sob o título In defence of future generations e Lawrence assevera que International law must respond to the reality of future generations. Curiosamente, os três primeiros autores afirmam que concordam com Humphreys quando ele diz que a “ênfase no futuro pode prejudicar as preocupações presentes e que certas invocações das futuras gerações são paroquiais e hipócritas”. Ainda assim, entendem que a invocação das FG pode ser emancipatória e relevante para o desenvolvimento do direito internacional buscando visões mais inclusivas e de longo prazo. Esses autores pregam um discurso mais abrangente, a partir de fontes fora do Global North, fazendo uso de direito indígena e da jurisprudência e prática do direito ambiental. Wewerinke-Singh, Garg e Agarwalla profetizam que ao “abandonar o discurso das futuras gerações se corre o risco de perder seu potencial para influir sobre o direito internacional com uma visão de justiça e solidariedade através do tempo e do espaço”.
Na maioria das passagens, mesmo que se refiram a julgados domésticos, a argumentação centra-se no direito internacional; fala-se também de modo conexo de justiça ou equidade intergeracional, buscando arrimo na clássica construção de Edith Brown Weiss, e, por vezes, se defende a possibilidade de reconhecer direitos a FG; trata-se de direitos humanos.
Da mesma forma, a recente publicação dos “Princípios de Maastricht sobre os direitos humanos das futuras gerações” se coloca no plano do direito internacional; ainda que não como conjunto de normas vinculantes, mas com potencial de exercer influência no cenário internacional.
Na esfera doméstica, igualmente cresce o recurso às FG, como ilustram casos citados por Wewerinke-Singh, Garg e Agarwalla e como se percebe na cada vez mais frequente constitutionalização da matéria. A constitucionalização das FG, na verdade, não é um fato novo, mas seu perfil tem se alterado e ganhado força, como explicam Renan Araújo e Leonie Koessler. Esses autores não relatam um crescimento, sem mais, do reconhecimento das FG como titulares atuais de direitos fundamentais (constitucionais), mas o desenvolvimento e fortalecimento da proteção constitucional dos interesses dessas gerações. Também é interessante notar que estes autores referem que um quinto das Constituições em que há referência às FG lhes reconhece algum tipo de direito; citam provisões que guardam um certo padrão e estabelecem a proteção do meio ambiente como um direito das gerações presentes e futuras.
No cenário brasileiro, Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer asseveram que “a proteção indireta dos interesses e direitos das futuras gerações, por meio de deveres estatais e deveres fundamentais (atribuídos aos particulares das gerações presentes), não tem se mostrado suficiente” e, citando Patryck de Araújo Ayala, aludem a um direito a um futuro, conferido às FG. Os autores não adentram questões técnico-jurídicas sobre a operacionalização de direitos atuais para FG, mas chamam a atenção para a necessidade de evolução da teoria dos direitos. Há enfoques próximos em toda a latino-américa, que tem assumido importante protagonismo na judicialização climática, juntamente com outros atores do Global South.
Em síntese, defensores da invocação das FG destacam a urgência de se tomarem medidas contra a crise climática e proclamam, em geral, deveres éticos e também jurídicos em relação a tais gerações, por vezes com base em princípios mais gerais, como a equidade intergeracional. Valem-se, frequentemente de maneira mais fluida que propriamente técnica, à existência de direitos das FG, não havendo grande elaboração sobre a operacionalização de direitos atuais para FG. Há, por certo, alguns autores que se debruçam sobre questões técnicas relativas à personalidade, e outros que asseveram a possibilidade de reconhecer direitos presentes a sujeitos ainda inexistentes, como Charlotte Unruh.
Na próxima coluna, vou explicitar pontos que entendo estarem a reclamar mais reflexão.
2 thoughts on “Levando os direitos fundamentais e as futuras gerações a sério (Parte I)”