Introdução: A Vingança da Moralidade

Em diversas obras de introdução ao estudo do direito, às quais os estudantes têm acesso ainda no início do bacharelado, a distinção entre preceitos morais e normas jurídicas se apresenta como uma das primeiras categorizações fundamentais para a compreensão dos fenômenos deontológicos, próprios do mundo do “dever ser” (e.g., Recasens Siches, Introducción…). 

À medida que avançam em seus estudos, porém, os futuros operadores do direito abandonam o espectro ético de análise para relegá-lo à distante perspectiva da filosofia (e.g., Finnis, Natural Law…). Assim, entregam-se com ávida dedicação às estritas técnicas de testagem da juridicidade dos fatos. 

Em uma espécie de vingança pelo abandono sofrido, assistimos com pavor à estranha e repetitiva aparição da “moralidade” em dez ocasiões na justificativa do projeto de decreto executivo de golpe de estado no Brasil, inserta em minuta recentemente apreendida pela Polícia Federal (Estadão), cujo teor teria sido elaborado, debatido e aprimorado dentro do próprio gabinete presidencial nos últimos meses de 2022 (DW).

Como assombrados pela alma penada de um cadáver insepulto, evidencia-se apropriado que nos questionemos acerca da utilidade (e desutilidade) das possíveis amplitudes do princípio da moralidade na retórica do direito constitucional (Chemerinsky 2002). 

A título de exercício argumentativo, façamos uma breve defesa abstrata em prol da sustentação jurídico-formal do princípio da moralidade para, em sequência, buscar confrontá-lo com alguns riscos decorrentes de seus potenciais desvios e abusos.    

Construindo o Princípio da Moralidade (Como Algo Potencialmente Bom)

Em nossa simulação discursiva, adotemos um encadeamento bastante simples de quatro passos fundamentais, capazes de justificar o argumento jurídico:   

1º – Resgate fontes antigas para legitimar historicamente: Sabido que a estruturação teórica do princípio da moralidade aplicável à administração pública se originou da doutrina administrativista francesa, tendo por inspiração as lições de Maurice Hauriou (1910). Recorde-se a jurisprudência há muito consolidada no Conselho de Estado francês, a qual se direciona no sentido de proibir decisões administrativas que visem a promover interesses individuais geradores de tratamentos pessoais distintivos e de privilégios, tão distantes da moralidade administrativa e do alcance imprescindível do interesse público (Welter 1929).  

2º – Registre que está previsto em várias partes da Constituição: O princípio da moralidade foi explicitado textualmente no art. 37, caput, da Carta Constitucional brasileira, na posição de balizamento jurídico imprescindível a toda e qualquer atuação administrativa do Estado. Porém, o regime constitucional da moralidade não se restringe a um único dispositivo positivado, haja vista a sua repercussão em outras bases estruturantes da Constituição (e.g., arts. 1º, 2º, 5º). 

3º – Invoque uma doutrina nacional bem aceita: Autor de monografia clássica sobre o tema no Brasil, Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1993) considera que o fato moral, concedente da qualidade moral aos atos administrativos, não nasce propriamente da lei em abstrato, mas de sua aplicabilidade necessária. Diante dessa premissa, a questão a ser equacionada alcança duas investigações essenciais, incidentes sobre a atuação concreta da administração pública (Franco Sobrinho 1992): a) a verificação da licitude no proceder administrativo; b) a interpretação moral diante da motivação e da finalidade. 

4º – Cite uma decisão da Suprema Corte (se for do Plenário, melhor): O Supremo Tribunal Federal brasileiro já reconheceu em precedente: “O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais” (STF 2002).

Voilà! Do ponto de vista de suas racionalidades interna e externa (Wróblewski, The Judicial Application…), conseguimos defender de forma razoável a tese de que o princípio da moralidade constitui um importante marco constitucional, carregado de relevantes bases históricas, doutrinárias e jurisprudenciais, com vistas ao condicionamento dos atos do poder público brasileiro em todas as esferas estatais. 

Agora, sigamos um caminho argumentativo diferente. 

Desconstruindo o Princípio da Moralidade (Como Algo Potencialmente Perverso)  

Soa pertinente o questionamento de Carlos Ari Sundfeld (2014), para quem princípios demasiadamente abertos como o da moralidade possuem previsão na Constituição brasileira e, em razão disso, configura-se razoável supor que sejam preceitos jurídicos capazes de obrigar ou proibir algo; mas o quê? 

Por intermédio de uma busca superficial na jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais brasileiros, foi viável identificar uma aplicação judicial qualitativamente abrangente do princípio da moralidade para diversificadas finalidades, a citar: 

a) autorizar quebra de sigilo bancário [direito tributário] (TRF/5 2017); 

b) admitir valor de execução superior ao que fora requerido pelo próprio exequente [direito processual civil] (TRF/3 2011); 

c) ordenar ao município que adote medidas para evitar o agravamento de danos ambientais [direito ambiental] (TRF/5 2017); 

d) determinar a cobrança do imposto de importação com base no câmbio da data da entrada da mercadoria no país [direito aduaneiro] (TRF/1 2000); 

e) corrigir erro no cálculo da média aritmética de questão de concurso público [direito administrativo] (TRF/1 2024). 

Em outro exemplo dessa notável variabilidade, também chama atenção o posicionamento da Procuradoria-geral da República, quando qualificou ofensivo ao princípio da moralidade o pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais a advogados públicos (MPF 2019).  

Com o desempenho similar ao de um plasma que se amolda às mais diversas aplicações industriais, o uso do princípio da moralidade foi sendo reformulado para se adequar a variadas subáreas do direito, sem que critérios objetivos fossem necessariamente definidos a priori

Do ponto de vista histórico-comparativo, alguns administrativistas franceses, ainda na década de 1950, nem chegavam a incluir a moralidade na posição de princípio jurídico específico, devido à sua excessiva amplitude de significados, preferindo atestar a existência de balizamentos outros vinculados à exigência de honestidade do agente público (e.g., Carcelle & Mas 1958). 

Nesse sentido, a defesa do princípio da moralidade na posição de categoria jurídica autônoma pode induzir ao reconhecimento de um crivo analítico exercido exclusivamente com base no juízo de moralidade (pública ou administrativa). A partir de tal compreensão, seria viável admitir que o julgador exercesse de forma independente o controle de legalidade (jurídico x antijurídico) e o controle de moralidade (moral x antimoral), apesar de o segundo se situar necessariamente vinculado ao primeiro (e.g., Hummel 1996). 

Em seus comentários à obra de Carlos Pérez Ruiz centrada na argumentação moral do Tribunal Supremo espanhol entre 1940 e 1975, Manuel Atienza (2013) exemplifica o risco histórico gerado pelo uso de razões morais em decisões exaradas por cortes de cúpula, especialmente quando adotados descritores morais nas respectivas justificativas decisórias (e.g., ética, fidelidade, honestidade, lealdade, moral social, moral comunitária). Aparenta que tais ocorrências podem se agudizar em interregnos ditatoriais, a exemplo do analisado período franquista na Espanha.  

Uma das versões da denominada “minuta do golpe” parece reforçar referida tendência (Estadão), na medida em que, por dez vezes, o princípio da moralidade foi invocado na posição de fundamento normativo-constitucional para implementar um “estado de sítio” no Brasil e, em sequência, decretar uma “Operação de Garantia da Lei e da Ordem”, a fim de impedir a posse do presidente eleito em 2022 e inaugurar um novo período ditatorial no país. 

Ainda que se considere a inversão do procedimento previsto no art. 137  da Constituição brasileira para a implantação do estado de sítio, o qual exige a prévia autorização do Congresso Nacional, inegável que houve a efetiva tramitação do projeto de decreto executivo dentro da estrutura institucional da Presidência da República, de modo a conceder-lhe suficiente oficialidade, inclusive mediante a participação direta do chefe do poder executivo, consoante depoimentos prestados pelas respectivas autoridades militares (DW). 

Subsidiariamente, apresenta-se pertinente recordar a concepção de “norma perversa”, definida por Liborio L. Hierro (La Eficacia…) como uma regra em geral descumprida e inaplicada, mas que eventualmente se aplica por intermédio da adoção de grande discricionariedade de fato. 

Portanto, a “norma perversa” permaneceria em um estado estável de dormência, para somente despertar sua eficácia quando se apresente uma ocasião livremente escolhida por seu aplicador, com base em critérios tão amplos que impulsionem a sua completa imprevisibilidade e potencial arbitrariedade. 

A partir dessa tipologia, seria viável reconhecer a conjunta existência de “princípios perversos”? Se sim, estaria o princípio da moralidade dentre eles? 

Devido às dimensões da presente coluna, tais questionamentos permanecerão em aberto, para que pesquisadores mais competentes aprofundem oportunamente a testagem da hipótese.  

Conclusão: Medo e Fobia

Tal qual Brás Cubas, personagem de Machado de Assis (Memórias…), aparenta que cada instância decisória almeja criar uma espécie de “emplasto milagroso” formulado com a finalidade de curar todos os males, dedicando o princípio da moralidade a essa performance argumentativa camaleônica. Para tal mister, cada instituição tende a desenvolver seu próprio princípio-norma, com a predisposição para ressignificar seus sentidos de acordo com as particularidades eleitas casuisticamente. 

Vista por esse ângulo, a baixa precisão de critérios objetivos aplicáveis ao princípio da moralidade evidencia riscos que não devem ser ignorados, especialmente com referência a expansões abusivas e interpretações desviantes. 

Em resposta sincera à pergunta do título do ensaio, reconheço meu medo ocasional do princípio da moralidade. Entretanto, após testemunhar seus dez recentes aparecimentos em um projeto de decreto presidencial de golpe de estado no Brasil, confesso que esse medo passou a evidenciar o potencial de evoluir para um quadro de fobia…

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1 thoughts on “Quem Tem Medo do Princípio da Moralidade?

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