A presente coluna constitui a segunda parte da publicação dedicada a avançar o potencial dos direitos humanos para a sustentabilidade como conceito justiciável. Trata-se de explorar os aspectos anteriormente pontuados e verificar a possibilidade de utilizá-los para a judicialização da sustentabilidade.  

A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos asseverou, sobre o caso Urgenda, que o direito internacional dos direitos humanos impõe aos Estados a obrigação legal de diminuir a emissão de GEE. Essa afirmação pode ser lida por um prisma amplo: os direitos permitem impor obrigações positivas concretas aos Estados baseadas em normas internacionais. Essas obrigações, fundadas em normas internacionais de direitos humanos, podem ligar-se também à sustentabilidade, ainda que se trate de normas de variada natureza jurídica (por exemplo, soft law, MACCHI; VAN ZEBEN). Este aspecto pode ser visto por uma perspectiva mais técnica: os direitos funcionam como ponte entre deveres gerais e obrigações concretas e específicas, preenchem normas relativas ao dever de proteção e normas que se ligam à responsabilidade (SAVARESI; SETZER). 

No caso da Lei alemã de proteção climática é relevante registrar que mesmo que a argumentação tenha se baseado nas liberdades fundamentais, foram as obrigações positivas derivadas dos direitos fundamentais que serviram de base para as imposições concretas ao Estado. O Estado, segundo a constituição alemã tem o dever de proteger a vida e a integridade física (art. 2(2) primeira linha), o que, combinado com o dever de agir em relação ao clima (art. 20a), impõe a obrigação, inclusive para o legislador, de tomar os passos suficientes, também de precaução, para assegurar a transição para a neutralidade climática, respeitando as liberdades das futuras gerações. De fato, nestas 3 decisões, os direitos e interesses das futuras gerações foram tangenciados de forma pioneira, apontando para a necessidade de precaução de modo a impor o cumprimento de deveres de cuidado e proteção sem necessidade de identificação específica dos titulares dos direitos em iminente perigo de violação. 

No que diz respeito à obrigação individualizada em face de problemas globais que demandam a ação de variados atores, no caso Urgenda, a Suprema Corte holandesa afirmou que o Estado holandês tem que cumprir suas próprias obrigações positivas concretas que advêm das normas e compromissos internacionais, não podendo se escusar sob a alegação de que há também o comportamento de outros Estados. No caso Shell, a responsabilidade de outros atores na redução da emissão de gases de efeito estufa foi claramente afirmada, mas também não teve o condão de negar a responsabilidade individual da empresa Shell. Os Princípios Orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos foram invocados para fortalecer o dever de diligência e cuidado (MACCHI; VAN ZEBEN), e para transformar a obrigação de responsabilidade não escrita em uma imposição judicial concreta e específica. O Tribunal Constitucional Federal alemão, de forma similar, afirmou que a atuação climática imposta ao Estado alemão tem uma inegável dimensão internacional que, mesmo assim, não libera a Alemanha de sua responsabilidade por implementar suas próprias ações e medidas climáticas de forma suficiente. 

Ciência e conhecimento científico ganharam um papel importante na judicialização da questão climática (STUART-SMITH et al), o que também pode ser relevante para a sustentabilidade. No caso Urgenda, tornou-se clara a importância de dados fornecidos por cientistas climáticos para sustentar o dever de cuidado do Estado como imposição de agir proporcional e suficientemente para enfrentar as ameaças para as presentes e futuras gerações. O conhecimento científico foi usado para perquirir se a alegada política estatal era proporcional e suficiente para cumprir o dever de cuidado imposto pelos direitos fundamentais. Da mesma maneira, no caso Shell, a melhor evidencia científica disponível foi referida para fundamentar a afirmação de que a política da empresa não era suficiente para fazer face às ameaças colocadas pela emissão de GEE. O Tribunal Constitucional Federal alemão também fez uso da ciência, mormente quando enfrentou o papel e o espaço de discricionariedade do legislador e não negou que há um grau de incerteza científica que rodeia o problema de calcular, em uma análise de custo-benefício, as causas e efeitos da emissão de GEE (EKARDT). Por um lado, em face de tais incertezas, entendeu que o Tribunal deve exercitar seu poder de controle constitucional com cuidado. Por outro, afirmou que tais incertezas não significam um espaço aberto de discrição para o legislador, de acordo com o art. 20a da Constituição alemã; em face das incertezas surge um dever especial de cuidado para o legislador. 

Por fim, na esteira das decisões abordadas, o Supremo Tribunal Federal brasileiro também enfrentou a questão climática em recente (julho de 2022) decisão acerca do Fundo Clima. A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 708-DF) visou a determinar à União Federal que se abstivesse das omissões na operacionalização do Fundo Clima e na destinação dos seus recursos. Foram invocados os compromissos ambientais internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, as evidências científicas acerca das alterações climáticas e da necessidade ação estatal, bem como as comprovações fáticas acerca do retrocesso ambiental vivido no país. O Tribunal valeu-se de preceitos constitucionais explícitos prevendo deveres estatais relativos ao meio ambiente (arts. 2º e 225), concretizados por meio de lei, mormente a disciplina do Fundo Clima. Tal base normativa foi usada para configurar a omissão inconstitucional do Estado. Neste caso, mesmo tendo sido aduzidas normas internacionais e de direitos humanos, observa-se que a base legal era bastante detalhada, facilitando a configuração da omissão antijurídica e a imposição de obrigações positivas concretas ao Estado relativamente à destinação de recursos e ao funcionamento do Fundo. No que tange ao potencial transformador dos direitos, importa ainda sublinhar que a cláusula de abertura contida no art. 5º, p. 2º da Constituição brasileira foi citada para reconhecer o direito fundamental ao meio ambiente e reforçar os deveres de cuidado impostos ao Estado. Por fim, foi significativa a menção, nesta decisão, da decisão alemã sobre a Lei de proteção climática, especialmente para justificar a intervenção judicial nesta matéria, ou seja, o cabimento de sua judicialização.

Esses aspectos brevemente apresentados tendo como referência as recentes decisões sobre alterações climáticas não podem ser simplesmente transpostos para casos referentes à sustentabilidade. Ainda assim, esses desenvolvimentos convidam ao aprofundamento da pesquisa sobre o potencial transformador dos direitos fundamentais ou humanos para a judicialização da sustentabilidade, já que tais desenvolvimentos demonstram a possibilidade de decisões judiciais que se baseiam em um enfrentamento de tais questões a partir dos direitos fundamentais ou humanos.

De fato, quando se trata da sustentabilidade mostra-se ainda mais plausível fortalecer a inegável intersecção com os direitos de modo a se apoiarem mutuamente na busca de efetividade, por meio da política e do direito internacional, por meio do design e da implementação de políticas públicas, mas também por meio da judicialização. Tal como estabelecido nos ODS, o foco tríplice da sustentabilidade traduz a intersecção e dependência recíproca entre indivíduos, planeta e prosperidade. Não só a questão climática, também a sustentabilidade é uma questão de direitos fundamentais.

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